- Eu fiz uma coisa horrível.
Eu não imaginava começar a nossa conversa daquela forma,
porém, as palavras saltaram da minha boca antes que eu pudesse pensar no que
estava dizendo. Aquele divã sempre pareceu desligar algum botão dentro de mim.
Aquele que mantinha os meus segredos mais obscuros enclausurados.
- Nossa, Alan. – Começou Carlos rindo, deixando de lado por
um instante sua postura profissional. Ele achava que, em certos momentos,
aumentar a intimidade com o paciente significava fingir que eles eram grandes
amigos, apenas tendo um bate papo corriqueiro, e não uma mente transtornada
sendo tratada por alguém, teoricamente, preparado para aquilo. – Nós nos
conhecemos a quase cinco anos, e nunca ouvi você falar algo assim. O que você
fez, matou alguém?
Ele continuou rindo no fim de sua frase, porém, o sorriso
foi morrendo ao encarar o meu rosto. Se a brincadeira era para aliviar a
situação, se não havia nada pior do que matar alguém, então, eu realmente tinha
feito algo horrível.
- Alan? – Ele tentou novamente, em um tom que, com certeza,
não fazia parte da sua postura de médico. Ninguém passaria confiança a um
paciente com a voz trêmula daquele jeito. – O que foi que você fez?
Fiquei imaginando até que ponto a confidencialidade
médico/paciente valeria. Mas eu
precisava contar o que eu tinha feito. Nunca fui considerado alguém com
sentimentos aflorados, que sentia remorso ou pena de alguma coisa ou de alguém.
Para mim sempre foi claro como a vida devia ser vivida. Meu pai me ensinou que
eu deveria traçar os meus objetivos e fazer o que fosse preciso para que o
resultado que eu almejei fosse satisfatório.
Porém, essa era a primeira vez em que eu traçava uma meta, tinha um
objetivo e tudo tinha sido bem-sucedido, mas que a culpa me corroia por dentro.
- Ele estava em meu caminho. Ele tinha algo que eu queria,
que era meu por direito. – Foi a única resposta que eu consegui achar para
justificar os meus atos naquele momento.
Eu estava olhando para o teto, como era natural em minhas
sessões. É muito mais fácil dizer tudo o que passa por sua cabeça quando você
não precisa ver um rosto te encarando e demonstrando em sua face desagrado e
hostilidade. É claro que Carlos sempre soube o que dizer, pois as palavras
sempre podem ser analisadas antes de serem ditas. Suas expressões no calor do
momento, não. Essas são cruas, e revelam as verdadeiras intenções de cada um.
Eu quase nunca olhava em seu rosto durante nossa hora
semanal, porém, aquele silêncio já havia durado tempo demais. Ao olhar para o
seu rosto, não posso dizer que me surpreendi com o que eu encontrei ali. O
choque e o medo em uma mistura muito característica daqueles que passam por
alguma situação terrível, e podem prever o que está por vir. O que mais
passaria na mente de um psicólogo quando um paciente confessa um crime? Que ele
seria a próxima vítima? Não deixaria de ser esperto de sua parte imaginar tal
cenário.
Apesar dessa provavelmente ser a confissão mais grave que
ele já tinha ouvido em seu consultório, ele ainda era um profissional que valia
o cheque que eu deixava com a sua secretária todas as semanas. Ele arrumou os
óculos, afrouxou um pouco a gravata e pigarreou antes de continuar.
- Quem estava em seu caminho, Alan? E por que uma atitude
tão drástica assim?
Voltei a olhar para o teto antes de continuar. Eu podia
confiar que ele não iria querer que eu encarasse o seu rosto novamente.
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Eu sempre fui rígido com os meu funcionários. Tinha uma
empresa milionária e várias pessoas sob o meu comando. Não podia ser
complacente com ninguém, muito menos com um mero motorista. Reinaldo estava
comigo a menos de um ano, mas já era um tempo considerável se levarmos em conta
os seus antecessores. Eu havia lhe dito que mais um atraso e ele estaria na
rua. Ter que cuidar dos filhos porque a esposa estava morta era uma desculpa que
só provava a sua falta de responsabilidade. Se queria trabalhar comigo, tinha
que colocar o trabalho acima de tudo, pois isso era exatamente o que eu faria.
Foi dessa forma que Douglas entrou novamente em minha vida.
Nunca tratei de contratações de empregados, a não ser que esses fossem ocupar
altos cargos em minha empresa. Jamais me importaria com alguém que iria apenas
dirigir o meu carro, portanto que fizesse corretamente o seu trabalho.
Já era fim de tarde, e eu me preparava para ir embora,
quando Leila entrou em minha sala. Minha gerente de RH, um cargo que também não
mantinha ninguém por muito tempo. Reclamações descabidas de funcionário é algo
que sempre me irritou profundamente. Você deve pensar antes no seu esforço,
depois nos seus direitos. Primeiro as suas metas, depois a recompensa.
Eu mal o reconheci quando ele entrou na sala, mas tantos
anos de convivência não seriam esquecidos tão facilmente. Douglas e eu nos
conhecemos em uma época em que eu não era tão centrado em meus objetivos, em
que eu era uma pessoa muito mais fraca do que eu sou agora.
Nós estudamos juntos, em uma escola pública local. Nós éramos
o que na época as pessoas chamavam de “melhores amigos”. Desde pequenos sentávamos lado a lado, sempre
estávamos juntos nos intervalos, dividindo os lanches preparados por nossas
mães. Durante anos sem nos separarmos, descobrimos juntos os mistérios do
mundo. Claro que eu só me tornaria o homem que eu sou hoje muitos anos depois.
Pelo visto, Douglas não tinha tido a mesma sorte.
Ele olhava para mim como se tivesse encontrado um velho
amigo que não via a muito tempo, e não um grande executivo, dono de um império,
enquanto ele não tinha conseguido nada em sua vida. Aquele uniforme de
motorista provava isso.
Leila nos apresentou e Douglas apertou a minha mão. Eu nem
sei o motivo de ter retribuído o seu comprimento. Em outra circunstância, eu já
o teria colocado em seu devido lugar, mas estava meramente curioso em saber o
que teria acontecido com ele. Em nossos últimos anos de colégio, eu me lembro
que ele partilhava de parte das minhas ambições. Tinha uma leve curiosidade para
saber o que teria levado alguém que pensava quase como eu, a aquele triste fim.
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- Você se sentia superior ao seu colega, apenas por ter sido
mais bem sucedido do que ele?
Carlos tinha um grande defeito que eu tentava ignorar. Para
ele todos eram iguais, e ser bem sucedido podia ser apenas fruto de um pouco de
sorte. Eu o ignorava por saber que o meu sucesso era fruto de muito trabalho,
suor e por fazer o que tivesse que ser feito.
- Eu não me sentia superior a ele. Eu tenho um império,
enquanto ele tinha um emprego que só pagava relativamente bem porque era meu
motorista, e uma família que ele não merecia, por não conseguir sustentar, por
não dar a eles o que realmente mereciam. É claro que eu era superior a ele.
- Estou espantado por você mencionar a família dele, Alan. –
Disse Carlos, com toda a sua pose de alguém que entende de mentes. Eu tinha
acabado de confessar a morte de alguém e agora ele estava espantado por eu
mencionar uma família. Muita contradição. – Nós já conversamos muito sobre
isso, você nunca sequer demonstrou o mínimo interesse em ter a sua própria
família, muito menos em famílias alheias.
O que essa família tinha de tão especial?
Eu respirei por um momento antes de continuar. Era nesse
instante que tudo mudava. Eu nunca imaginei que tudo o que eu construí iria
desmoronar com uma lembrança, com algo a mais que eu poderia ter tido em minha
vida.
- Eu conhecia a mulher dele, ela também estudou conosco.
Paula...
Oi, Jana!
ResponderExcluirNossa, amei essa primeira parte do conto!!
Não gostei do Alan, por ele se sentir superior aos outros, e tô bem curiosa pra saber qual o motivo dele ter matado alguém, que eu acho que é o Douglas.
Um bjo <3
Que bom que você gostou, Dilza <3 <3 <3
ExcluirÉ, o Alan não é realmente uma pessoa para se encantar com ele hehehe
Beijos!!!
Acho super legal a ideia de postar contos mensais...
ResponderExcluirÉ sempre uma ótima surpresa ler algo inédito e acompanhar como a história vai prosseguindo e evoluindo.
Que venha a parte 2
Que bom que você gostou, Diego!
ExcluirNo próximo sábado vocês já vão poder conferir a parte 2 :D