Retrato de uma mente transtornada (Parte 2/4)

| 23 maio 2015 |

Nós já estávamos no carro. Eu não permitiria que nenhum outro motorista falasse comigo durante a viagem, e em breve eu teria que tirar de Douglas essa mania, mas hoje eu estava curioso. Tudo o que havia dado certo em minha vida parecia ter dado errado na dele. Mas, mesmo assim, ele parecia alguém feliz. A marca de todo fracassado que quer demonstrar que a vida é bela.

- Então, tudo ia bem, eu tinha até entrado em uma faculdade pública. Meus pais ficaram muito felizes por não terem mais uma despesa.

Ele parecia contente em contar um fato tão banal. Nós tínhamos nos distanciado pouco tempo antes da faculdade. Eu fui estudar fora. Já era um sonho alcançar o topo o mais rápido possível. O tipo de trabalhos que eu fiz para bancar minha vida no exterior era algo que eu nem gostava de pensar. Porém, por mais que eu tenha me sujeitado a serviços totalmente inferiores ao que eu almejava, o que importava é que eu tinha voltado da forma que eu queria. Um diploma importante em baixo do braço e dinheiro o suficiente para começar algo que ninguém poderia imaginar que se tornasse tão grande. Só tão grande talvez quanto a minha ambição.

- Quando eu arranjei meu primeiro emprego, estava no segundo ano. Não passava de um estágio, na verdade. Mas eu ainda morava com meus pais, então, não era como se eu fosse passar fome. – Douglas olhou pelo retrovisor, sorrindo para mim, como se aquilo fosse imensamente engraçado. – No dia em que eu cheguei no prédio onde ficava o escritório, você não vai acreditar em quem eu encontrei trabalhando na recepção.

Ele deixou aquele suspense pairando no ar. Como se eu fosse realmente esboçar alguma reação de curiosidade pela sua resposta. Estava realmente muito perto de mandá-lo parar de falar, o que quer que fosse, quando sua resposta trouxe à tona coisas que eu não me lembrava a muito tempo.

- A Paula. – Ele disse, aumentando ainda mais, se é que era possível, aquele sorriso bobo em seu rosto. – Você se lembra dela? Estudou com a gente alguns anos, se formou com a gente e tudo.  Tenho certeza de que você lembra, ela vivia correndo atrás de você.

E ele balançou a cabeça, apesar de continuar rindo. Era como se ele estivesse ironizando o fato de Paula já ter corrido atrás de mim algum dia.

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Eu não era ninguém naquela época. Apenas mais um estudante entre tantos, porém, já tinha noção que afastava algumas pessoas da minha vida. Douglas era exceção apenas porque nos conhecíamos realmente a muito tempo, mas as outras pessoas, eram todas tão claramente inferiores a mim e as minhas futuras conquistas que eu não conseguia lidar com elas. Eu perdi a conta de quantas vezes esse homem, que agora é meu motorista, me disse que eu era chato, que ninguém iria querer ter nenhum tipo de relacionamento comigo.

Mas Paula era insistente. Por mais que eu a afastasse, ela sempre voltava com um sorriso, o que me irritava absurdamente, pois não era um sorriso complacente, de alguém bom que sempre volta para mais um tapa. Era um sorriso superior, de alguém que perdoa o outro por ele não saber o que está fazendo.

- Um dia você vai cair em si e entender que eu sou a mulher da sua vida.

Foram essas palavras que me fizerem nunca encostar um dedo sequer nela, até a noite da nossa formatura.

Eu cheguei em um momento em que tudo na minha vida tinha que ser centrado em meus objetivos, mesmo que eles fossem controlados momentaneamente pelos meus hormônios. Eu sabia ser galanteador quando eu queria, o que também era muito importante no mundo dos negócios, principalmente quando se está começando a construir algo grande nesse mundo.

Uma boa parte das meninas da escola me odiava, não que eu me importasse. Eu era sedutor em um dia e um traste no outro. Era o que elas me diziam. Paula era linda, eu não podia negar, mas me irritava tanto, essa sua superioridade, essa certeza de que iria me dobrar, que eu nunca tive vontade de tentar algo a mais, até aquela noite.

Paula estava com um vestido vermelho, mais decotado e apertado do que qualquer outra formanda da nossa turma.  Ela recebia olhares desejosos de todos os alunos, e críticos de todos os professores, que não podiam fazer nada com os seus pais presentes na festa.

Eu não podia negar que a queria aquela noite, e o momento não poderia ser mais perfeito. Nós nos formaríamos e nunca mais estaríamos juntos outra vez. Ela teria que se lamentar sozinha pela única noite que esteve ao meu lado, e que nunca mais se repetiria.

Nós nos beijamos durante algumas horas, em cantos escuros, para que ninguém visse. Eu não tinha uma palavra para definir aquele momento. Paula era tão mulher, tão adulta, e não só apenas por conta do vestido, suas ações naquele momento provavam isso. E eu queria mais, muito mais. E essa foi a primeira vez em que eu me senti realmente frustrado.

Paula simplesmente foi embora, como se estivesse completamente satisfeita com o que tinha tido até então. Não me pediu para ligar para ela, nem tentou deixar um contato caso eu quisesse algo a mais. Ela também sabia que nós não nos veríamos mais. Era impossível de imaginar que, depois de tantos anos, apenas aqueles beijos escondidos seriam o suficiente.

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- Sua primeira real frustração, portanto, foi porque uma mulher não quis dormir com você. – Carlos era o mestre em dizer o óbvio. – Você já parou para pensar que talvez a sua frustração não tenha sido com ela, mas com você? Que depois de esperar durante tanto tempo, ela tenha se decepcionado com algo que você achou fantástico?

Tive vontade de rir de seu comentário, mas não gostava muito desse tipo de demonstração. Se tinha algo que eu tinha plena segurança, eram as minhas habilidades, seja em que área for.

- Ela não se decepcionou comigo, ela mesma disse isso.

- Naquela noite, ela quis conversar com você?

- Não, não naquela noite, muitos anos depois.

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Logo nós chegamos até o meu apartamento. Eu vi o olhar de Douglas apreciar o prédio sem cerimônias e fingir um assovio, mesmo sem som algum. Ele olhou para mim e levantou o polegar, como que me parabenizando por tamanha conquista.

- Ah, mas eu também tenho algo bem legal para te mostrar. – Ele disse, tirando a carteira do bolso e me entregando um pedaço de papel bem guardado ali dentro.

Era uma foto e parecia ser bem recente. Nela estava Douglas, com esse sorriso irritante no rosto. Uma criança, que eu não havia ideia de que idade tinha. Nunca convivi muito com crianças, e não tinha a mínima vontade de começar. E, por último, lá estava ela, linda como sempre.

Os anos pareciam ter sido muito bons para Paula. A mulher que eu achava que ela já fosse na nossa formatura, não fazia jus a mulher que estava naquela foto. Eu percebi naquele instante que eu tinha que vê-la. Apenas uma foto foi o suficiente para me lembrar algo que há muito tempo estava esquecido. Algo que eu tinha como meta, mas me foi negado. Dessa vez seria diferente.

- Tomas tem 6 anos. Ele é um amor de criança. – Douglas começou a ilustrar a foto, talvez confundindo meu olhar fixo com um real interesse por sua história. – Paula ficou grávida no mesmo ano que nós nos reencontramos. Foi um acidente, mas... – Ele simplesmente deu os ombros, como se certas coisas da vida estivessem além de seu controle.

- Eu larguei a faculdade e comecei a trabalhar, período integral. Nós nos casamos logo em seguida, para que a barriga dela não aparecesse tão grande nas fotos do casamento.

Eu tive que tirar o meu olhar da foto e realmente olhar para Douglas por um momento.  O que faria alguém como ela dar o que me foi negado a um fracassado como ele? Eu realmente não era nem a sombra do homem que eu sou hoje, porém, éramos apenas estudantes, ainda podíamos lutar pelo nosso futuro. Ele era apenas um estagiário, tentando ser alguém na vida.

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- Eu sei que você não liga para essas coisas, já conversamos muito sobre isso, mas, passou pela sua cabeça que talvez ela amasse Douglas? 

Eu tive vontade de olhar para Carlos novamente, mas não faria isso. Amor nunca levou ninguém a lugar algum. Apenas aqueles capazes de se desapegar desse sentimento conseguiam algo de verdade em sua vida.

- Paula correu atrás de mim durante anos, como uma menininha apaixonada. Ela teve uma chance de concretizar todos os seus sonhos em apenas uma noite, mas foi covarde demais para isso. Ela não amava aquele idiota, eu tenho certeza.

Mas, como em raros momentos em minha vida, aquelas últimas palavras foram apenas da boca para fora.

2 comentários:

  1. Nossa, estou cada vez mais esse protagonista! Carinha chato e convencido!!
    Mas estou amando a história, Jana! Louca pra próxima parte!
    Abraços!!

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    1. Tem personagens que merecem ser odiados... hehehe
      Muito obrigada pelo seu comentário, Dilza. Significa muito para mim <3

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