Ninguém se lembra como é respirar pela primeira vez. Aquele
choro desesperado de quem perdeu toda a segurança que conhecia e estava prestes
a encarar um mundo novo. Eu também não me lembrava de como era, mas achava que
podia ser bem próximo ao que eu estava sentindo nesse momento.
Puxei o ar para dentro de meus pulmões várias vezes
seguidas, me deliciando com aquela sensação. Meus olhos fechados permitiam que
eu me concentrasse em coisas muito mais simples e puras.
Eu sentia o ar percorrer os meus braços nus e balançar os
meus cabelos. Aquilo ela reconfortante. Poderia ficar naquela posição para
sempre, apenas desfrutando da dádiva que era estar viva.
- Uma hora você terá que abrir os olhos, minha filha.
Em qualquer outro momento, uma voz surgindo ao meu lado
teria me sobressaltado, mas a paz que eu sentia era tamanha, que nada poderia
me assustar. Era como se nada de mal pudesse me acontecer naquele lugar, onde
quer que eu estivesse.
Aquela primeira dúvida pareceu ser o estopim que meu cérebro
precisava para acordar. Continuei sentindo o conforto de antes, mas agora tudo
o que aconteceu parecia vivo na minha mente. Várias perguntas me percorriam
nesse momento, mas abrir os olhos provavelmente era a melhor forma de começar a
responder algumas delas.
Um vendaval de cores. Essa foi a primeira coisa que passou
pela minha mente. Eu estava deitada, em algum lugar que não tinha absolutamente
nada, ao mesmo tempo em que estava lotado de emoções.
Era como se o vento pudesse ser visto, colorindo o ar de
maneira consciente. Cores e mais cores circulavam ao meu redor, tocavam o meu
corpo e traziam aquela sensação de tranquilidade que eu estava sentindo.
Comecei a rir feito uma criança com a beleza que se seguia a minha frente. Não
precisava desviar o olhar para ser deslumbrada com aquelas imagens, mas um riso
ao meu lado me fez procurar pela dona daquela voz.
Tive que olhar por algum tempo até ter realmente certeza do
que estava vendo. Era como se o ar, com todas as suas cores e formas, ali fosse
mais compacto e sólido. Só quando minha mente aceitou entender o que eu estava
vendo, que um primeiro suspiro de surpresa escapou da minha garganta.
- Não precisa se preocupar. Eu estava esperando por você.
Eu não estava preocupada, eu estava paralisada de tanta
admiração. Aquele era o ser mais majestoso que eu já tinha visto. Senti meus
olhos encherem de lágrimas devido ao tamanho da minha emoção.
Bem a minha frente estava o ser mais lindo que eu já tinha
visto. Era claramente uma mulher, envolta em cores e brilho. Sua pele era
delicada como o vento. A medida que ela se movimentava, eu enxergava melhor a
sua forma. Era como o mais caro e delicado dos tecidos se movendo ao seu bel
prazer. Seu corpo inteiro parecia reluzir da mesma forma. O vento entrava e
saia de seu corpo como se ela, e todo aquele lugar, fossem um só.
Só percebi que ela estava agachada ao meu lado, quando se
levantou. Envergonhada de continuar deitada, também suspendi meu corpo. Ele
estava leve como nunca. O vento e suas cores se agitavam ao meu redor como um
cachorrinho em busca de seu dono.
- Onde eu estou? – Perguntei, as dúvidas começando a encher
minha mente.
- Você está em casa, minha filha. Seja bem-vinda.
Ela sorriu novamente e eu respondi da mesma forma. Não
entendia o que ela queria dizer, mas não conseguia sentir nada por aquele ser
que não aquecesse meu coração.
- Sei que você deve ter muitas perguntas. Eu não trago aqui
todas as minhas filhas. Muitas delas conseguem descobrir sozinhas qual o seu
destino. Outras, eu preciso guiá-las mais de perto.
- Quem é você?
- Você sabe quem eu sou. O seu coração estava esperando por
esse momento, mesmo que não tivesse se dado conta disso.
Ela tinha razão. Eu sabia quem ela era. Soube desde o
momento em que senti aquela sensação maravilhosa como nunca em sua presença.
- Você é a Deusa dos Ventos.
Ela sorriu confirmando, mas em seguida seu sorriso sumiu,
dando lugar a um olhar de preocupação. Meu coração se contraiu, não querendo
ver nada em seu rosto que não fosse alegria, mas não sabia como ajudar.
- Você pensa que é uma amaldiçoada. – Seu olhar parecia
triste e desapontado. Eu não queria que ela me olhasse daquela forma, mas não
podia mentir.
- Você não sabe o que eu fiz. Eu sou um monstro.
Eu não podia mais olhar em seus olhos, não agora que
confessaria todos os meus pecados. A vergonha de ser alguém tão vil começou a
percorrer as minhas veias.
- Você está enganada, Cecília. Eu sei tudo o que acontece na
sua vida.
Levantei os olhos alarmada, pensando encontrar algo ainda
pior naquele olhar, mas vi, para minha felicidade, um sorriso divertido.
- Não precisa se preocupar. Não estou aqui para julgá-la,
estou aqui apenas para lhe dar um conselho.
- Um conselho? –
Perguntei, sem entender como tudo aquilo podia se resumir a um conselho.
- É, apenas um conselho. – Ela olhou para cima e continuou a
falar. – Tudo o que acontece em nossas vidas é resultado das nossas escolhas.
Você sabe que já fez muitas escolhas erradas em sua vida, mas o que importa é
que agora decidiu fazer boas escolhas.
Era verdade, eu tinha decidido. Mas talvez fosse um pouco
tarde para isso.
- Se você escolher ser uma amaldiçoada, então acontecerá
aquilo que você fez com os guardas, repetidas vezes, até que seu coração esteja
completamente destruído e não sobre nada para que você siga em frente. Mas,
você pode escolher encarar o seu poder como um dom, e poderá salvar muitas
pessoas, assim como você fez com Alex. Esse poder nasceu com você, minha filha,
e estará sempre com você. O que você vai fazer com ele, só depende das suas
escolhas.
Se eu tivesse alguma dúvida de que palavras pudessem aquecer
o coração, ela teria se desvanecido naquele momento. Fechei os olhos, apenas
para sentir aquela sensação maravilhosa dentro de mim. Aquele poder que sempre
esteve comigo, mas eu era egoísta demais para que ele aflorasse. Quando isso
aconteceu, eu não era a pessoa certa para ele. Ao invés de tratá-lo como parte
de mim, eu preferi repudiá-lo, e isso só trouxe infelicidade e destruição.
Agora eu tinha plena consciência do que eu deveria fazer.
Abri os olhos, para compartilhar as minhas descobertas, mas
não foi a Deusa dos Ventos que eu encontrei a minha frente.
O olhar assustado de Alex, percebendo que eu tinha ficado
entre ele e aqueles homens, que estavam tentando nos matar, era algo que eu
nunca esqueceria. O medo era perceptível, mas havia algo mais ali, algo que
encheu meu coração de esperança.
Eu toquei seu rosto, tentando acalmá-lo e, sem medo, me
virei para os homens ao nosso redor. Só aquilo, um leve rodopiar, foi
necessário para que eles voassem a alguns metros de distância. Alex ofegou,
pensando que seria uma repetição do horror que ele tinha visto. Mas eu estava
tranquila.
Puxei sua mão em direção ao cavalo, quando os homens
começaram a se mexer, sem entender o que tinha acontecido. Alex suspirou de
alívio e sorriu para mim. Puxei o seu corpo em direção ao meu, ansiando poder,
finalmente, tocar os seus lábios e corresponder a algo que eu sei que existia
entre nós.
Eu estava tão bem, tão feliz, que tinha certeza que mais
ninguém seria ferido. Não pelas minhas mãos. Eu era uma das filhas da Deusa dos
Ventos e tinha um trabalho a fazer.
Iria encontrar meus pais e convencê-los de que nós não
erámos uma ameaça. Iria honrar a minha Deusa poupando suas filhas de uma vida
de reclusão e punições. Iria ser uma Princesa de verdade, alguém que realmente
olha pelo seu povo. E iria ser uma mulher amada com um grande dom, que eu nunca
mais renegaria.
Quando Alex subiu no cavalo e me puxou para junto de si, eu
sabia que não estava mais sozinha e que não era a pessoa que havia deixado
aquele lugar assustada e infeliz.
O cavalo disparou em direção aos portões. Eu não sabia o que
aconteceria, mas estava tranquila. Aquele sentimento bom dentro de mim não iria
mais embora. Deitei minha cabeça no peito de Alex, sabendo que tudo seria
diferente, porque eu era uma pessoa diferente e tinha alguém ao meu lado que
faria toda a diferença.
FIM
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